O Direito tomou emprestada da Biologia a expressão autofagia (que vem do grego e, literalmente, significa “comer a si mesmo”), sobretudo na voz do ministro Marco Aurélio Melo, o qual assim se referiu para salientar uma face do chamado ativismo judicial. O contexto é aquele em que o Supremo Tribunal Federal, guardião da ordem democrática e da Constituição, por vezes interpreta a lei de forma arbitrária e seus ministros decidem sozinhos nos processos, impondo convicções pessoais em detrimento da decisão dos colegas.
As cenas de destruição na Praça dos Três Poderes, no último domingo (8 de janeiro), marcam um dos episódios mais dolorosos da história de nossa República. Em decisão monocrática no Inquérito 4.879/DF, proferida no mesmo dia dos atos de terror, o ministro Alexandre de Moraes determinou, entre outras medidas, a dissolução de acampamentos realizados nas imediações dos quartéis e outras unidades militares para a prática de atos antidemocráticos, a prisão em flagrante de seus participantes, bem como o afastamento cautelar do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, pelo prazo inicial de 90 dias.
Conforme afirmado na decisão, “absolutamente NADA justifica e existência de acampamentos cheios de terroristas, patrocinados por diversos financiadores e com a complacência de autoridades civis e militares em total subversão ao necessário respeito à Constituição Federal”, nem “a omissão e conivência do Secretário de Segurança Pública e do Governador do Distrito Federal com criminosos que, previamente, anunciaram que praticariam atos violentos contra os Poderes constituídos”.
Embora não haja razões para discordar do ministro nesses pontos, a decisão utiliza mecanismo claramente autofágico para solucionar o problema.
O Brasil adota, no processo penal, o chamado sistema acusatório, cuja essência é a separação institucional das funções de acusar, julgar e defender. Nessa intricada construção, o juiz só pode agir quando provocado por quem detém legitimidade e interesse processual (inércia da jurisdição). Conforme o art. 129 da Carta Magna, compete exclusivamente ao Ministério Público o ajuizamento das ações penais públicas. Já as medidas cautelares (como afastamento de governador), que na maior parte das vezes antecedem a ação penal, são “decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público” (art. 282, § 2º, do Código de Processo Penal).
No caso da decisão do dia 8, as medidas cautelares de desocupação dos acampamentos, prisões em flagrante e suspensão de perfis de redes sociais foram requeridas pela Advocacia-Geral da União. A prorrogação do inquérito dos atos antidemocráticos e o afastamento de Anderson Torres da Secretaria de Segurança Pública do DF se deram a pedido do senador Randolfe Rodrigues. O curioso é que nenhum deles possui legitimidade para requerer o implemento de tais providências, pois sequer são parte no processo penal – o que poderiam fazer, no máximo, seria uma representação (sugestão) para que a Polícia Federal ou a Procuradoria-Geral da República pedissem, caso acatada.
Já o afastamento de Ibaneis, quem requereu? Ninguém, pelo que consta da decisão. Segundo o ministro: “Na presente hipótese, verifico haver necessidade de se impor medida cautelar diversa da prisão – uma vez que não houve representação da PF ou requerimento da PGR pela prisão preventiva – consistente na suspensão do exercício da função pública do agente público que teria tido, ao menos pelos elementos de prova inicialmente coligidos e amplamente divulgados, envolvimento com os fatos descritos, ainda que por omissão dolosa”.
Veja-se que ele se refere a requerimento de prisão preventiva, mas, igualmente, não se extrai das petições formuladas pelo senador e pela AGU pedido para que o governador fosse afastado.
As medidas, portanto, se deram em atendimento a pedidos de partes ilegítimas ou de ofício – sem pedido algum, por conta própria do julgador -, o que é vedado pelo CPP, como dito acima.
Prova desse desacerto é que hoje (08) foi noticiada nova decisão de Moraes, o qual, desta vez após requerimento da Polícia Federal, decretou a prisão de Anderson Torres e do ex-comandante da Polícia Militar do DF Fabio Augusto Vieira por suposta participação ou omissão nos atos de domingo.
A separação de poderes (ou melhor, de funções, na ideia de Montesquieu) continua sendo um dos pilares da teoria político-jurídica e um princípio fundamental para o adequado funcionamento dos Estados Democráticos de Direito, para a manutenção da democracia, a organização do Estado e a proteção aos direitos fundamentais. Ciente disso, o Constituinte de 1988 previu, detalhadamente, os limites e poderes de cada esfera estatal, num sistema de freios e contrapesos (accountability).
Isso não significa, como ensina o jurista José Afonso da Silva, que a divisão do poder se mantém imutável; os agentes estatais são livres para organizar as suas atividades, desde que vinculados às diretrizes da Constituição e das leis.
Na autofagia biológica, o organismo “recicla” partes danificadas de suas células para manter o equilíbrio interno do corpo em condições adversas, como privação de nutrientes, presença de bactérias, vírus, fungos e toxinas. Mas esse mecanismo, em certos casos, pode ocorrer de forma desordenada e matar a própria célula.
Tal consequência não pode ser deixada de lado no campo político-jurídico. Fora das balizas constitucionais, e mesmo intencionados pela mais nobre virtude, corremos o risco de, a pretexto de preservar a democracia, destruir as instituições democráticas em que se firma o Estado de Direito.
Caio Alcântara Pires Martins, mestre em Direito Constitucional, é sócio do escritório Demóstenes Torres Advogados.