A prisão de Temer e a corrosão do Direito no Brasil

Recentemente, noticiou-se o restabelecimento da prisão provisória do ex-presidente Michel Temer. A determinação partiu do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, após provimento de recurso do Ministério Público Federal. O caso é de importância ímpar para o debate jurídico atual. Por esta razão, alguns apontamentos pertinentes devem ser feitos.

No caso tratado neste breve ensaio, a partir da impressão de que os atos praticados no bojo do processo que culminou com a prisão do ex-presidente Michel Temer seguem um padrão no âmbito do Poder Judiciário, abordamos a ausência de legitimidade de decisões judiciais em razão da distorção deliberada do sentido das hipóteses normativas que permitem a restrição de determinado direito fundamental, no caso, a liberdade de locomoção.

Antes, contudo, é importante fazer algumas digressões, com o fim de alicerçar a discussão da legitimidade da decisão judicial.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, em seu artigo 5º, uma série de liberdades individuais. Assegurou o constituinte liberdades tanto de conteúdo religioso quanto de conteúdo político e civil.

No entanto, não obstante a importância das liberdades constitucionalmente protegidas, uma se destaca dentre elas: a liberdade de locomoção. E isso em razão de que o seu exercício desembaraçado traduz condição de possibilidade para o regular exercício das demais liberdades constitucionais.

O artigo 5º, inciso XV da Constituição Federal, prescreve que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. A hipótese normativa constitucional retrata um direito fundamental de 1ª dimensão, se dirigindo ao Estado, que apenas poderá restringir o direito de “ir e vir” nos casos expressamente previstos na própria Lei Maior.

Reconhecida a sua força normativa (Hesse), que assegura a liberdade individual de locomoção, estabelece a regra proteção ao indivíduo, conferindo à liberdade verdadeiro status jurídico. Disto se tem que a restrição do direito só será dotada de legitimidade caso se dê nos limites normativos expressos pela Constituição, prescritos nos incisos LXI e LVII do seu artigo 5º, devidamente conformados pela legislação política. A restrição do direito, portanto, pressupõe que sejam observadas as hipóteses legais. A Legalidade, entendida a partir do paradigma do Estado Democrático de Direito, assume papel de relevo no constitucionalismo contemporâneo, já que possibilita a delimitação dos contornos do legítimo exercício do Poder.

A partir da análise da legalidade constitucional como contorno da própria legitimidade de ação do Estado na restrição de direito fundamental, a decisão que suspende a proteção do direito de locomoção, se fundando em razões despidas de natureza cautelar, perde a sua conformidade à lei, haja vista não se derivar de fonte autorizada. A autoridade só a exerce porque permitida pelo ordenamento jurídico, só podendo agir dentro dos limites rígidos das normas que lhe conferem tais atribuições. Quando ela, na restrição de direito fundamental de determinado indivíduo, utiliza-se de razões estranhas às hipóteses devidamente previstas pelo ordenamento jurídico, a decisão, além de ilegal, revelar-se-á ilegítima e, por consequência, fruto do arbítrio. É o que acontece com frequência na interpretação judicial do artigo 312 do Código de Processo Penal Brasileiro.

A Carta Magna, embora empreste caráter normativo à liberdade de locomoção do indivíduo, permite a sua restrição provisória com o fim de proteger outros bens jurídicos assegurados. As hipóteses de restrição do direito à liberdade foram devidamente elencadas no Código de Processo Penal e contemplam a possibilidade de o Poder Judiciário, havendo a demonstração da necessidade de tutelar cautelarmente o processo, suspendê-la. Para tanto, é importante que o julgador analise a pretensão, devidamente movida pelo órgão competente.

No caso do direito brasileiro, não parece haver maiores dúvidas de que tal limite se dá apenas de forma contingencial, quando haja a presença de fato dotado de provisionalidade que justifique a necessidade de se acautelar o processo. A Doutrina não diverge neste ponto. Trata-se, portanto, de instituto processual com nítido caráter instrumental. Todavia, vê-se formar aqui uma cultura de inobservância dos textos legais, a partir do crescente número de decisões judiciais discricionárias fundadas em razões totalmente estranhas ao programa normativo, conforme há tempos leciona Lenio Streck.1 Deste modo, constata-se a tendência da distorção de sentido da norma que permite a restrição do direito fundamental de “ir e vir”. Vejamos, brevemente, o caso do ex-Presidente Michel Temer.

A Justiça Federal da 2ª Região determinou a sua prisão, no mês de março deste ano. Na decisão judicial, é possível perceber o desvirtuamento das disposições normativas, posto que o próprio juízo justificou a necessidade excepcional de se avaliar o pedido a partir da gravidade do delito e da necessidade de endurecimento do combate à corrupção. A distorção é tão evidente que se lança mão de instrumento normativo convencional, mais especificamente o artigo 11, nº 42 da Convenção da ONU contra o Crime Organizado, o qual demanda a observância da gravidade dos delitos na liberação antecipada do infrator, quando reconhecido como culpado. E, como se sabe, neste caso não há, ainda, a formação da culpa.

Em seguida, concluindo pela natureza excepcional do ato decisório naquele caso específico, o juízo passou a analisar as provas produzidas pela acusação, antecipando a análise do mérito da Ação Penal. É possível perceber a inexistência de correlação entre os fundamentos do decreto prisional e a hipótese normativa de restrição da liberdade, sobretudo porque os fatos narrados não são contemporâneos, nem apresentam o caráter contingencial que informaria a sua natureza cautelar. Na verdade, a decisão de 1º grau não escondeu as suas razões de decidir, justificando, expressamente, que o caso demandaria tratamento de exceção. Neste ponto, o juízo, apesar da prática de ação ilegítima, foi honesto e expôs que:

“[…] o fato é que os crimes de corrupção, peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa, como o narrado, devem ser tratados com a gravidade legalmente determinada, especialmente quando envolvido o ex-presidente da República, ocupante do mais alto cargo do país.” (pg. 8 da decisão judicial)

Em desafio à decisão de 1º grau, os defensores do ex-presidente impetraram Habeas Corpus junto ao TRF. O relator, ao analisar os fundamentos da defesa, deferiu, in limine, a ordem, restabelecendo a liberdade do paciente. Contudo, o TRF, ao analisar o mérito do remédio constitucional, revogou a liminar anteriormente concedida e recompôs a sua prisão provisória, fundando-se em razões semelhantes às lançadas pelo juízo de 1º grau, o que confirma tratar-se de medida de exceção.

Não obstante o Tribunal tenha apreciado os fatos narrados pelo Ministério Público, não há qualquer elemento que demonstre a necessidade de acautelar o processo, na forma prevista na legislação infraconstitucional. A decisão desenvolve-se a partir de razões externas ao direito posto.

A cultura de inobservância dos textos normativos, tanto daqueles promulgados na vigência da Constituição Federal de 1988, quanto daqueles por ela recepcionados, expõe com clareza a radicalização do ativismo judicial. Mesmo quando o julgador se depara com determinado texto livre de ambiguidades e vaguezas, a atribuição de sentido se dá de forma discricionária, mormente quando a determinação legal contradiz a noção interna de justiça do julgador. A autoridade normativamente autorizada utiliza das próprias estruturas do ordenamento jurídico para corrigi-lo, a partir de um juízo livre das amarras legais e, por tal razão, ilegítimo.

Desta forma, resta evidente que a autoridade que extrapola os comandos normativos, fundando-se em razões morais externas e revestidas de pretensão corretiva, age em campo estranho ao direito posto, tolhendo de forma ilegítima direitos individuais que deveriam ser tutelados pelo Poder Judiciário. Trata-se de verdadeiro justiçamento.

Não há qualquer diferença entre decisões do Poder Judiciário que, justificadas em razões de justiça, extrapolam a permissão normativa e violam direitos de determinado indivíduo, dos atos da multidão, que também movida pela intenção de se fazer justiça, amarra o indivíduo ao poste e o espanca.3 Ambas as ações não poderiam ter espaço num Estado Democrático de Direito.

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1 Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Uma exploração hermenêutica da construção do direito. Livraria do Advogado.

2 Artigo 11

Processos judiciais, julgamento e sanções

  1. Cada Estado Parte tornará a prática de qualquer infração enunciada nos Artigos 5, 6, 8 e 23 da presente Convenção passível de sanções que tenham em conta a gravidade dessa infração.
  2. Cada Estado Parte diligenciará para que qualquer poder judicial discricionário conferido pelo seu direito interno e relativo a processos judiciais contra indivíduos por infrações previstas na presente Convenção seja exercido de forma a otimizar a eficácia das medidas de detecção e de repressão destas infrações, tendo na devida conta a necessidade de exercer um efeito cautelar da sua prática.
  3. No caso de infrações como as enunciadas nos Artigos 5, 6, 8 e 23 da presente Convenção, cada Estado Parte tomará as medidas apropriadas, em conformidade com o seu direito interno, e tendo na devida conta os direitos da defesa, para que as condições a que estão sujeitas as decisões de aguardar julgamento em liberdade ou relativas ao processo de recurso tenham em consideração a necessidade de assegurar a presença do arguido em todo o processo penal ulterior.
  4. Cada Estado Parte providenciará para que os seus tribunais ou outras autoridades competentes tenham presente a gravidade das infração previstas na presente Convenção quando considerarem a possibilidade de uma libertação antecipada ou condicional de pessoas reconhecidas como culpadas dessas infrações.

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